Plus size não é “mudança radical” em padrão, diz autora de livro sobre história da beleza no Brasil

A historiadora Denise Bernuzzi de Sant'Anna e a capa do seu lviro A historiadora Denise Bernuzzi de Sant’Anna e a capa do seu lviro “História da Beleza no Brasil”, resultado de sua tese de doutorado sobre história do corpo (Foto: Divulgação)

Símbolo de um movimento que busca resgatar padrões mais “reais” de beleza feminina, o movimento plus size não significa um rompimento com o modelo vigente, de acordo com a historiadora Denise Bernuzzi de Sant’Anna, que acaba de lançar “História da Beleza no Brasil” (Ed. Contexto). 

“Quando começam a aparecer esses modelos na internet, não demora muito para que as próprias pessoas que são pluz size, que querem mostrar que são belas sendo gordas, interiorizem normas do mercado”, disse a historiadora. Na publicação, resultado da tese de doutorado que defendeu na Universidade Paris VII, Denize analisa as mudanças de padrão e a busca pela perfeição física ao longo do último século.

Para a historiadora, após conquistar o primeiro lugar no ranking de países que mais realizam cirurgias plásticas este ano, o Brasil vive a época de maior obsessão pela beleza em sua história. “Nunca, como agora, nós tornamos a beleza um gênero de primeiríssima necessidade. A ponto de acreditar que ser humano é alguém que trabalha sobre a própria aparência 24 horas por dia”, observa.

Na conversa, Denise, que finalizou o projeto quando o país ainda ocupava o segundo lugar entre os campeões em cirurgias estéticas, fala sobre a evolução do mercado de beleza, as transformações dos padrões ao longo dos anos, os estereótipos tipicamente brasileiros, além da nova modalidade de bullying praticado em escolas contras meninas consideradas “bonitas demais”.

Confira a seguir os principais trechos do bate-papo.

BRASIL LÍDER EM CIRURGIAS ESTÉTICAS
“Não sei em relação ao futuro, mas em relação ao passado, estamos no auge  da obsessão pela beleza. Nunca, como agora, nós tornamos a beleza um gênero de primeiríssima necessidade, a ponto de acreditar que o ser humano é alguém que trabalha sobre sua própria aparência 24 horas por dia. A cirurgia plástica está tão banalizada especialmente aqui porque a concorrência é ainda maior. Nosso país é jovem ainda, o que significa uma concorrência ainda maior, inclusive para conseguir emprego. As pessoas têm que se manter jovens, não ter rugas e cabelos brancos é fundamental para se manter no mercado.”

O BULLYING DA BELEZA
“Não há estatística disso em épocas anteriores [violência praticada contra adolescentes consideradas ‘bonitas demais’]. A hipótese é que agora, como a beleza é uma mercadoria tão cara, tão difícil e ao mesmo tempo tão banal, virou alvo de violência. Se voltamos no tempo, há alguns documentos que mostram que era quase o contrário. As meninas e meninos considerados feios -porque eram baixinhos, usavam óculos, eram barrigudos- eles é que eram alvo de violência. Nos filmes, o feioso e feiosa é que eram marginalizados. Isso é uma coisa para se pensar – hoje a beleza é algo tão em foco que é ela o problema. É como se a criança bonita expressasse ‘Eu não precisei ter muito trabalho sobre mim para ser assim’ e isso é absolutamente objeto de inveja. Estamos criando um mundo diferente.”

Ilustrações de "História da Beleza no Brasil": anúncios e revistas de época mostram a evolução do mercado de cosmetologia no país (Foto: Divulgação)Ilustrações de “História da Beleza no Brasil”: anúncios e revistas de época mostram a evolução do mercado de cosmetologia no país (Foto: Divulgação)

O MOVIMENTO PLUS SIZE
“É paradoxal porque ao mesmo tempo já é uma recodificação do mercado. É muito difícil se manter qualquer expressão corporal, mesmo da moda, fora do mercado, que é muito ágil. Quando começam a aparecer esses modelos na internet, não demora muito para que as próprias pessoas que são pluz size, que querem mostrar que são belas sendo gordas, interiorizem normas do mercado. Por exemplo: a ideia da pele lisa, sem rugas ou manchas. A ideia de “Sou gorda, mas não tenho celulite”, ou “Sou gorda, mas sou proporcional”. Então, tanto as plus size nos EUA e no Brasil, onde já há concurso de miss, seguem o padrão. É bom que existam, porque varia um pouco [o padrão de beleza], mas não pense que é uma diferença radical.”

“Quando começam a aparecer esses modelos na internet, não demora muito para que as próprias pessoas que são pluz size, que querem mostrar que são belas sendo gordas, interiorizem normas do mercado.”

A BELEZA COMO DIREITO
“Após a Segunda Guerra Mundial, há relatos, tanto aqui quanto nos EUA, de uma época de bonança, de pleno emprego, de melhoria nas condições de vida que vai até os anos 70 e isso favorece a venda de produtos para o cuidado com o corpo. Em termos mais específicos, a partir dos anos 50, o modelo de beleza passa a ser não só pautado pela vestimenta, e os produtos de beleza vão querer ganhar o interior do corpo. A beleza deixa de ser algo só para a aparência e provisória e tem que ser cada vez mais corpo a corpo. Sobretudo depois dos anos 60, a beleza deixa de ser só dever e passa a ser um direito. Essa é uma grande mudança do pós-guerra.”

MERCADO DE BELEZA
“É neste momento de pós-guerra que a cosmetologia se transforma num domínio importante, ou seja, não só a fabricação de cosméticos, mas a produção em fábricas vão estar envolvidas nos primeiros congressos sobre o assunto. Não havia antes pessoas especialistas em cosmetologia. Os  próprios médicos vão ser chamados para trabalhar nas grandes empresas. Depois, surge um mercado de cosméticos de maneira muito mais ampla. É a época da ‘Avon chama’, a empresa americana que passa a vender de porta em porta. É a época em que o cosmético é o rei da publicidade –ocupa a maior parte dos anúncios das revistas. É a época em que, nos EUA, se diz que se consumiu mais creme de beleza que manteiga.”

"Esse corpo musculoso sem nenhuma gordura a mais expressa a vontade que todo mundo tem de um absoluto controle sobre si", diz historiadora sobre padrão atual de beleza (Foto: Think Stock)“Esse corpo musculoso sem nenhuma gordura a mais expressa a vontade que todo mundo tem de um absoluto controle sobre si”, diz historiadora sobre padrão atual de beleza (Foto: Think Stock)

AVANÇOS MÉDICOS
“Antes, os dermatologistas tratavam do que a gente chama problemas médicos de pele. Cada vez mais, temos o surgimento da medicina estética –uma parte da medicina que envolve o cirurgião plástico, o dermatologista e o nutricionista- voltado não só para a saúde mas também para a aparência. Junto com isso, surgem nas pratelerias do supermercado e farmácias os dermocosméticos – cosméticos que também são remédios. A ideia não é só disfarçar, como as antigas bases, o famoso pancake. No Brasil, a partir do governo Collor, houve a abertura de mercado para produtos estrangeiros, e grandes marcas entram no mercado. É a grande tendência de todos os produtos cosméticos de serem também dermocosméticos.”

MENOS ROUPA, MAIS CUIDADOS
“O biquíni foi lançado em 1946. Uma famosa editora de moda, Diana Vreeland, disse que a invenção tinha o impacto de uma bomba atômica. Antes disso, a depilação e o cuidado com a barriga não eram necessários, porque você não expunha o corpo publicamente. No Brasil, quando se populariza o biquíni, na década de 60, começam a surgir as matérias sobre celulite. A depilação vem junto nesse pacote. Quanto mais se diminui a quantidade de pano que cobre o corpo, mais a exigência do trabalho embelezador aparece, e a depilação é parte disso. Como desde os anos 60 era comum a depilação das pernas femininas, com o banalização do biquíni até chegar ao fio dental, ela vai se acentuando. Você pode ficar nua, desde que bem cuidada.”

“Cada época tem seu corpo. Esse corpo musculoso sem nenhuma gordura a mais expressa a vontade que todo mundo tem de um absoluto controle sobre si.”

BELEZA À BRASILEIRA
“Fora do Brasil se fala muito de biquíni e depliação à brasileira. A gente exportou essa norma de beleza. Uma pergunta que sempre se faz: ‘Será que no Brasil o culto ao corpo é mais rigoroso do que em outros países?’ Eu não sei se em todos os países, mas no Brasil é bem rigoroso e sempre foi bastante com as mulheres –agora tem sido também com os homens. Aqui, há uma associação bastante forte entre corpo com pelos e sujeira. Quase um puristanismo. Claro, tudo isso flutua com a moda. Hoje estamos num momento bastante diversificado. É possível perceber vários modelos de moda praia, mas a marca registrada ficou o fio dental. O estereótipo da brasileira, o clichê vendido até turisticamente continua sendo a mulher bronzeada, com fio dental e corpo bronzeado.”

CULTO AO CORPO
“Nos anos 80 ainda temos uma influencia grande do balé e das academias de jazz. A mulher era esguia, longilínea e leve. Só a partir dos anos 90 que essa mulher mais musculosa, guerreira de ombros largos, coxas e braços fortes, vai se firmando. Isso tem a ver com vários fatores. Um deles é que os modelos de beleza acompanham as necessidades gerais da cultura. No mercado de trabalho, a concorrência é mais violenta nos dias de hoje que há 30 anos. É preciso uma mulher mais forte, mais feroz. Os filmes de Hollywood já mostram isso, não é uma especificidade brasileira: são mulheres guerreiras, com boca forte para abocanhar o mundo. Os traços delicados desaparecem. Cada época tem seu corpo. Esse corpo musculoso sem nenhuma gordura a mais expressa a vontade que todo mundo tem de um absoluto controle sobre si. Uma sociedade que não tolera aquilo que não pode render.”

EMPRESÁRIOS DO CORPO
“As pessoas estão muito preocupadas com o próprio rendimento de maneira geral. Tudo tem que render. O corpo não pode mais ser um passivo dessa “empresa”. Não é mais tão importante como nos anos 20 ser um modelo de beleza x ou y. Você até pode ter um corpo, uma aparência fora dos padrões, mas o que te coloca no padrão, em voga no mundo é mostrar que sabe fazer desse corpo um valor de trabalho. É quase um espírito neoliberal na produção do corpo. No sistema liberal, havia uma diferença entre o que você é o que você tem. Ainda havia a possibilidade de tirar do mercado aquilo que você é. No neoliberal, tudo é mercado, aquilo que você é, o que você tem. Não é só seu carro, sua casa, sua aparência que você vende. São seus pensamentos, seus desejos, seus genes, tudo pode ser mercadoria. O ser humano fica fadado a ter que fazer de si próprio um empresário.”

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